Navegar é Preciso! Para Fugir de Napoleão…

Representação da chegada da Família Real ao Brasil em 1808 (pintura de Geoffrey William Hunt, Inglaterra - 1999)

Em 27 de novembro de 1807, a Família Real portuguesa e milhares de nobres aguardavam uma mudança na direção dos ventos para deixarem seu país. Um ano antes, Napoleão Bonaparte decretou o Bloqueio Continental, exigindo que todas as nações européias fechassem seus portos aos navios ingleses, eliminando assim todas as relações comerciais que pudessem ter com a Inglaterra. Mas Portugal era velho parceiro econômico da Inglaterra, e acatar o bloqueio napoleônico poderia abalar essa relação e provocar futuras represálias inglesas. Por outro lado, não acatar o Bloqueio Continental poderia provocar uma guerra. Portugal tentou negociações que não surtiram efeitos. Finalmente, em agosto de 1807, Napoleão ordenou a invasão a Portugal. Lá no porto, em novembro daquele ano, os ventos mudaram na madrugada do dia 29, e a Família Real com toda a nobreza e a tripulação que os acompanhavam partiram mar adentro, rumo à sua colônia americana, o Brasil. As tropas francesas invadiram Lisboa às 9 horas da manhã do dia 30 de novembro.

Família Real Portuguesa em 1808, com Dom João VI em destaque (referência ao artista não encontrada)

Napoleão Bonaparte (pintura de Jacques-Louis David, 1812)

A Astronomia tinha uma importância prática vital na navegação antiga, pois o céu é o único referencial quando se está em alto-mar, sem nenhum sinal de terra firme no horizonte. Um exemplo simples da importância dos astros na navegação é a determinação da latitude. A latitude de onde você está é sua distância angular do equador terrestre, medida sobre a superfície da Terra. O equador é um círculo perpendicular ao eixo de rotação terrestre, o eixo que liga o polo Sul ao polo Norte. Se você prolongar esse eixo de rotação, ele irá “tocar” o céu em dois pontos diametralmente opostos, um no hemisfério sul celeste e outro no hemisfério norte celeste. Esses pontos chamam-se polo sul celeste e polo norte celeste. Veja que interessante: como o equador é perpendicular ao eixo de rotação, conhecendo a posição de um dos pólos celestes em relação ao seu horizonte, você sabe o quanto está afastado do equador. Ou seja, você sabe a sua latitude!

A figura abaixo mostra como podemos encontrar a latitude conhecendo a altura do polo celeste. Você sempre vai medir a altura do seu polo celeste (seja ele polo celeste sul ou polo celeste norte) como o ângulo entre esse ponto e o horizonte. Para facilitar a visualização das relações entre os ângulos formados pelo eixo de rotação da Terra, o equador e o horizonte do observador, esse último foi projetado paralelamente de modo a passar no centro do planeta. A figura mostra também que, a latitude, igual à altura do polo celeste, é também igual à distância angular entre o equador celeste e o ponto mais alto do céu, sobre a cabeça do observador, chamado de Zênite. Essa distância entre o equador celeste e o Zênite deve ser medida ao longo da linha que passa pelo polo celeste e pelo Zênite.

Esquema mostrando a relação entre a latitude e a altura do polo celeste (figura fora de escala)

Os polos celestes são fixos em relação às estrelas, numa escala curta de tempo em que possamos ignorar os efeitos da precessão dos equinócios, de maneira que observando as estrelas, podemos encontrar os polos celestes.

O eixo de rotação da Terra executa um movimento, chamado precessão, que causa a mudança da posição dos polos celestes em relação às estrelas. Esse efeito só é percebido ao longo de várias décadas ou séculos. A estrela polaris, que fica bastante próxima do pólo norte celeste, estava um pouco mais afastada dele durante a viagem da família Real para o Brasil, mais de 200 anos atrás.

Posição da estrela polaris em relação ao polo celeste norte (no centro da imagem) em 27 de novembro de 1807 - Clique na imagem para ampliá-la (produzida com o porgrama Kstars, do Linux)

Posição da estrela polaris em relação ao polo celeste norte (no centro da imagem) em 30 de novembro de 2010 - Clique na imagem para ampliá-la (produzida com o porgrama Kstars, do Linux).

Mesmo sem uma boa estrela que possa ser usada como dica para encontrarmos o pólo sul celeste, podemos achar um ponto bem próximo a ele “no olho”, prolongando-se o braço maior do Cruzeiro do Sul quatro vezes e meia da cabeça para os pés da cruz.

Posições no céu do Cruzeiro do Sul e do polo sul celeste

Marinheiro americano utilizando um sextante, cerca de 1965 (fonte: NOAA Central Library Historical Imagery)

Evidentemente, a navegação astronômica não era feita no “olho”, e diversos instrumentos de medida da posição dos astros foram desenvolvidos. Um deles é o sextante, que servia para se medir a altura de um astro em relação ao horizonte. É bastante provável também que a tripulação utilizasse um relógio inventado por John Harrison, que mostrava grande precisão e tinha um tamanho bastante reduzido. Entre outras coisas, o relógio era utilizado para o cálculo da longitude.

O problema de falta de referencial era também enfrentado pelos que se deslocavam nos desertos. Os povos árabes contribuíram muito para a Astronomia de posição, e usamos hoje muitos nomes de origem árabe em estrelas como as Três Marias, Alnilan, Mintaka e Alnitak, e em elementos da Astronomia, como Almucântar, círculo paralelo ao horizonte.

A viagem histórica da Família Real terminou com a chegada dos navios portugueses ao Rio de Janeiro em 8 de março de 1808. Atracaram no cais do Largo do Paço, nossa atual Praça XV. A paisagem de hoje ali não nos faz recordar os navios que por lá aportaram, nem nos remete às aventuras das Grandes Navegações. Mas aqueles grandes navegadores do passado que deixaram a Europa para desbravar os mares abaixo do equador deixaram sua marca no céu. Enquanto as constelações do hemisfério Norte nos remetem a personagens e lendas de culturas antigas, aqui no hemisfério Sul temos constelações como Octante, Esquadro e Compasso, outros instrumentos também importantes para navegação. Temos também a constelação da Quilha, Popa e da Vela. Um bom tributo ao céu que tanto lhes serviu para orientação.